O enfretamento da crise do Covid-19 na Argentina.
Author: Carla Amaral de Andrade Junqueira
A Argentina tem sido tomada como exemplo de sucesso no combate ao coronavírus por parte
da mídia brasileira. Como brasileira residente em Buenos Aires, sou constantemente
questionada sobre a legitimidade das informações divulgadas e o quanto as notícias se
coadunam com a realidade do país.
Em 19 de março de 2020, o Presidente Alberto Fernández foi rápido e implacável ao
determinar o chamado “lockdown” na Argentina, logo que os primeiros casos foram
identificados. Quatro dias antes, no dia 15 de março, o governo havia anunciado a
quarentena, fechamento das escolas e o distanciamento social, porém, ao verificar o
descumprimento das medidas pela população, optou pelo regime mais rigoroso de
distanciamento social obrigatório.
A partir dessa data, o país passou a ser governado por um Decreto. O Decreto de Necessidade
e Urgência, o famoso “DNU”, emitido pelo Presidente Alberto sem passar pelo processo
legislativo habitual, já que o Congresso Nacional estava e continua fechado, se tornou a lei
maior da Argentina, passando por cima da Constituição Federal.
Durante os primeiros meses do “distanciamento social obrigatório”, a sociedade argentina
cumpriu com responsabilidade o rigor do DNU acreditando na justificativa sanitária por detrás
da medida. Ou seja, as pessoas abriram mão de vários dos seus direitos constitucionais
fundamentais, tais como: liberdades individuais, direito à atividade econômica, direito de ir e
vir, entre outros, para contribuir para um bem maior: a saúde pública.
No último mês, no entanto, após a terceira extensão da quarentena e o anúncio de algumas
medidas de intervenção nas esferas privadas e individuais, como foi o caso da possível
expropriação da empresa exportadora Vincentin, com base no conceito de “soberania
alimentar”, a sociedade argentina começou a questionar a legitimidade dos objetivos do
governo. A população não acredita poder atingir “soberania alimentar” por meio da
intervenção e expropriação de uma empresa que fatura US$ 3 bilhões de dólares por ano, e
exporta os seus produtos alimentícios para a China. Em outras palavras, o azeite produzido
pela Vincentin nunca foi usado nas refeições dos argentinos.
Parte da população argumenta que o governo estaria se aproveitando da crise para justificar
medidas de exceção não necessárias e governar sem o processo democrático da tripartição
dos poderes. Com efeito, desde o início da quarentena, tanto o poder legislativo quanto o
poder judiciário estão quase totalmente inativos.
No se refere à situação sanitária, apesar de todo o rigor do Lockdown nos último 90 dias, os
casos não param de aumentar e o governo anunciou que não haverá flexibilização das
medidas e em algumas províncias cogita-se inclusive aumentar as restrições.
Outro ponto de atenção diz respeito às favelas. Assim como no Brasil, aqui na Argentina não
há controle efetivo da quarentena nas chamadas “villas”. Ali a polícia não entra para
controlar, o que faz com que o número de casos aumente muito. Uma recente e polêmica
decisão do governador da Província de Buenos Aires, Axel Kiciloff causou revolta na
população. Kiciloff anunciou o “isolamento” dos bairros vulneráveis que registrem casos de
coronavírus. Ou seja, ninguém entra e ninguém sai do bairro, o que transformaria as favelas
em uma espécie de “guetos”. Existem 1800 favelas na província de Buenos Aires e a curva de
contágio só aumenta.
Do ponto de vista econômico, embora o governo tenha disponibilizado uma ajuda financeira
equivalente a R$ 500,00 reais para a população vulnerável, esse valor não chegou à maioria
das pessoas. O desemprego aumenta a cada dia, apesar da proibição de demissões e da
imposição de “indenização dobrada”. As indústrias estão encerrando as suas atividades e o
pequeno comércio, que representa 90% da economia da Argentina, fechando a suas portas.
O déficit fiscal aumentou, o PIB diminuiu, os investimentos são quase inexistentes, a inflação
não para de subir e a moeda está cada vez mais desvalorizada.
Além de tudo isso, a fome, a violência doméstica, a delinquência, a criminalidade, casos de
depressão e estresse pós-traumáticos também preocupam governo e população.
Um recente estudo de uma universidade estrangeira baseado nas crises da argentina em
2001, norte-americana em 2008 e grega em 2009, concluiu que as mortes causadas pela crise
econômica na Argentina, resultante do prolongamento da quarentena, podem superar 100
mil dentro dos próximos dois anos. Apesar de tudo isso, a efetividade real, e não
circunstancial, da quarentena ainda não foi totalmente evidenciada.